Apresentamos o comentário à liturgia do 5º Domingo da Páscoa – At 6, 1-7; Sl 32 (33) 1-2.4-5.18-19; 1Pd 2, 4-9; Jo 14 1-12 – redigido pelo professor Gabriel Frade. Natural de Itaquaquecetuba (São Paulo), Gabriel Frade é leigo, casado e pai de três filhos. Graduado em Filosofia e Teologia pela Pontificia Universitas Gregoriana (Roma), possui Mestrado em Liturgia pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora D’Assunção (São Paulo). Atualmente é professor de Liturgia e Sacramentos no Mosteiro de São Bento (São Paulo) e na UNISAL – Campus Pio XI. É tradutor e autor de livros e artigos na área litúrgica.
* * *
5º Domingo da Páscoa
Leituras: At 6, 1-7; Sl 32 (33) 1-2.4-5.18-19; 1Pd 2, 4-9; Jo 14 1-12
“Os cinqüenta dias entre a Ressurreição e o Domingo de Pentecostes sejam celebrados com alegria e exultação, como se fossem um só dia de festa, ou melhor, ‘como um grande domingo’.”
(Normas Universais sobre o Ano litúrgico e o Calendário, n. 22).
Ainda marcada pela alegria pascal, a liturgia da Palavra deste V Domingo da Páscoa nos apresenta uma grande riqueza de conteúdos. A leitura semi-contínua do livro dos Atos dos Apóstolos nos oferece uma imagem da Igreja nascente na qual a comunidade, impelida pelo Espírito do seu Senhor Ressuscitado e à semelhança de sua Pessoa (cf. Lc 2, 40), é descrita como um organismo que cresce de modo progressivo, encontrando graça aos olhos do Pai.
Apesar disso, dentro da comunidade cristã aparentemente nem tudo é dom, nem tudo é bondade. Ao contrário daquela imagem idealizada pelo autor dos Atos no capítulo segundo, onde todos eram unânimes na partilha dos bens e nas orações (cf. At 2, 42ss), a passagem apresentada neste sexto capítulo nos mostra uma comunidade onde há murmurações e divisões.
No centro da contenda, algo escandaloso: no momento de distribuir os bens da comunidade às viúvas dos chamados “helenistas” – provavelmente judeus advindos da diáspora e falantes da língua grega – ocorre um “esquecimento”, por parte dos “hebreus”.
Diante do problema, os Doze não hesitam em pedir a participação da comunidade – identificada possivelmente com a “multidão dos discípulos” mencionada no v. 2: esta deve escolher de seu meio “sete homens de boa reputação, repletos do Espírito e de sabedoria” (v. 3) para proverem às necessidades da igreja.
O papel da comunidade nesse processo, ou seja, na eleição madura daqueles membros que deverão exercer um ministério – escolha esta a ser confirmada pelos Apóstolos –, encontra um paralelismo muito belo e profundo na segunda leitura. São Pedro, ao dirigir-se a toda comunidade, lembra com palavras fortes o seu protagonismo, através de uma referência à dignidade sacerdotal que todo fiel possui:
“Mas vós sois uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, o povo de sua particular propriedade [...] Vós que outrora não éreis povo, mas agora sois o Povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastes misericórdia” (vv. 9-10).
Diante da eleição feita pela comunidade e a julgar pelo nome dos escolhidos – todos nomes oriundos da língua grega –, é possível intuir que tenham sido eleitos apenas membros do grupo dos helenistas para exercer a diakonia, isto é, o serviço dentro da comunidade.
Se assim foi, é interessante notar que a escolha recaiu sobre aqueles que estariam de certo modo “contaminados” pelo paganismo da cultura helênica e, por isso mesmo, possivelmente discriminados por aqueles membros da comunidade cristã, chamados no texto de “hebreus” (v. 1). Estes eram assim denominados porque eram provavelmente cristãos ligados ao judaísmo hierosolimitano, talvez considerado mais puro, mais tradicional em relação ao elemento estrangeiro. Nesse sentido, sabe-se, por exemplo, que naquela época os judeus de língua grega tinham sinagogas separadas daqueles que falavam o aramaico: para além de uma questão apenas lingüística, há a possibilidade de uma separação dessas comunidades judaicas em função de outros elementos de caráter discriminatório.
O mais curioso é que não obstante o fato de ter sido justamente no grupo dos helenistas o local onde surgiram as “murmurações” contra a injustiça perpetrada pelos hebreus, o autor dos Atos não hesita em nomear um desses escolhidos para servir a comunidade como “homem cheio de fé e do Espírito Santo” (v. 5).
Ao que parece, este episódio contém algum elemento de uma escolha inusual e que nos remete a uma mesma lógica já delineada pelas escolhas divinas no Antigo Testamento.
De fato, existem várias passagens onde Deus expressa uma predileção pelos mais fracos. Por exemplo, as grandes figuras bíblicas sobre as quais recaiu a escolha de Deus não seriam, segundo uma lógica puramente humana, os modelos mais indicados, já que se apresentam cheios de falhas: Moisés, por exemplo, cometera um assassinato (Ex 2, 12); o Patriarca Jacó havia roubado a bênção de seu irmão Esaú (Gn 27, 1ss); Davi, além de adúltero, tramou a morte de Urias (2 Sam 11), um homem inocente...
Obviamente há que se dizer que Moisés, Jacó e Davi se sobressaíram não propriamente por esses pecados, mas justamente pelo fato que, não obstante suas fraquezas humanas, não se fecharam para a ação de Deus, mas antes, voltaram-se para Deus com todas as suas forças.
Outro elemento que exprime a predileção divina no AT pelos pobres e fracos é a tríplice categoria que sintetiza de modo emblemático a situação de todo pobre em Israel: além dos órfãos, compunham essa categoria os estrangeiros e as viúvas (ver, por exemplo, Dt 24, 17ss e 1 Re 17, 9ss). De fato, na pregação de Jesus, recorre com certa freqüência a figura da viúva, especialmente no evangelho de S. Lucas, autor também dos Atos dos Apóstolos (Lc, 2, 37; Lc 4, 26; Lc 7, 12; Lc 18, 3; Lc 20, 28; Lc 21,2).
Por esse motivo, o “esquecimento” narrado em Atos, nos parece na verdade um forte indício de algo ainda mais grave: um fechamento ao amor mútuo entre irmãos. Um dobrar-se às tradições humanas em detrimento à correspondência do amor ao próximo (“Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros”. Jo 13, 34). Deus não fica indiferente a isso:
“Eis que o olho do Senhor está sobre os que o temem, sobre aqueles que esperam seu amor, para da morte libertar a sua vida e no tempo da fome fazê-los viver”. (Salmo Responsorial. Trad. Bíblia de Jerusalém)
Apesar dessas incongruências, a comunidade cristã é animada pela força do Espírito, fruto do Mistério Pascal de seu Senhor que supera toda dificuldade humana. Aliás, esse é o modo misterioso do agir de Deus: sua ação se coloca muitas vezes contra a lógica meramente humana (1 Cor 1, 27): “A pedra que os edificadores rejeitaram, essa tornou-se a pedra angular” (1Pd 2, 7. Segunda Leitura).
Diante das fraquezas humanas, do medo da solidão e do abandono, Deus se revela como um Deus condescendente, um Deus que quer a salvação de todos os homens (cf. 1Tm 2, 3-4) e oferece paz ao nosso coração irrequieto, muitas vezes tomado pelas preocupações humanas: “Cesse de perturbar-se o vosso coração” (Evangelho, v. 1). Deus conhece nossas limitações e se nos faz próximo, nos oferece um ambiente familiar, um lar onde possamos encontrá-lo e fazer comunhão com ele: “Na casa de meu Pai há muitas moradas” (Evangelho, v. 2). Mas muitas vezes nos encontramos tão céticos que não conseguimos enxergar – assim como os discípulos de Emaús (Lc 24) – a predileção de Deus por nós e sua presença em nossas vidas.
Perante nossa freqüente incapacidade de perceber como seja possível encontrar Deus, Cristo se nos apresenta como “Caminho, verdade e vida” (v. 6): Ele é, de certo modo, o “método” por excelência que o Pai nos doa para que possamos realizar o desejo mais profundo de toda a humanidade, que é aquele de contemplar o rosto do Pai, de viver em comunhão com Deus.
Jesus, Mestre Divino, inspirou um grande número de fiéis na Igreja a buscarem no rosto do Filho a contemplação do Pai – dentre estes fiéis, lembramos do Beato Pe. Tiago Alberione e a irmã Tecla Merlo, fundadores da família paulina e que tinham particular veneração por Cristo Caminho, Verdade e Vida.
Cristo inspira ainda hoje sua amada esposa, a Igreja, a ter o mesmo carinho e solicitude, para que todos os homens possam ter a vida e a vida em abundância, pois para isso Cristo nossa Páscoa foi imolado, com sua morte venceu a corrupção do pecado destruiu nossa morte e nos garantiu a vida em plenitude (cf. Prefácio IV da Páscoa).
Essa inspiração está particularmente presente na América Latina e no Caribe, onde a Igreja está atenta a ouvir o Cristo Mestre, como bem o afirmaram os bispos reunidos na Conferência de Aparecida:
Com a luz do Senhor ressuscitado e com a força do Espírito Santo, nós os bispos da América nos reunimos em Aparecida, Brasil, para celebrar a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Fizemos isso como pastores que querem seguir estimulando a ação evangelizadora da Igreja, chamada a fazer de todos os seus membros discípulos e missionários de Cristo, Caminho, Verdade e Vida, para que nossos povos tenham vida n’Ele. (Documento de Aparecida, n. 1)
“Quem me vê, vê o Pai” (v. 9).
Essa percepção da presença do Senhor na Igreja (“Cristo está sempre presente na sua Igreja, especialmente nas ações litúrgicas” – SC 7), se traduz em grande alegria pascal, que da celebração litúrgica deve reverberar ao longo da vida concreta do cristão, no seu dia a dia, pois o “O gesto litúrgico não é autêntico se não implica um compromisso de caridade, um esforço sempre renovado para ter os sentimentos de Jesus Cristo e uma continua conversão" – Documento de Medellin, 9,3.
A Igreja é de fato esse “edifício espiritual” do qual cada um de nós é chamado a ser “pedra viva” para oferecer “sacrifícios espirituais agradáveis a Deus”.
Em sendo assim, ao nos tornarmos templos do Espírito Santo (cf. 1 Cor 6, 19) fazemos presente o rosto de Cristo no hoje de nossa história: na medida em que seguimos Cristo Caminho, Verdade e Vida, fazemos as mesmas obras que Jesus faz (Evangelho, v. 12), fazemos a Palavra de Deus Crescer [1] (Primeira leitura v. 7), finalmente, fazemos presente no mundo o rosto do Filho, nos tornamos para o outro um “alter Christus” (outro Cristo) onde é possível contemplar o rosto do Filho e bendizer as obras do Pai: “Vede como se amam! [2]”.
Notas:
1. É o princípio formulado por São Gregório Magno: Scriptura crescit cum legente, isto é, a Escritura cresce com quem a lê. O Espírito que repousa nas Escrituras está presente também em nós.
2. Essa expressão é do cristianismo antigo e nos foi conservada por Tertuliano. Tratava-se da exclamação que os pagãos emitiam ao ver o despojamento e amor dos cristãos, dispostos a dar a vida pelos irmãos.
--- --- ---
[Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes - São Paulo), que originalmente assina esta Seção, está em viagem à Itália para compromissos de sua comunidade. Ele retorna em quatro semanas. Os comentários deste período estão sob sua curadoria.]
Fonte: Zenit.org
Comentários
Postar um comentário