Liturgia da Palavra

DOMINGO DE RAMOS

Apresentamos o comentário à liturgia do Domingo de Ramos – Mt 21, 1-11; Is 50, 4-7; Fl 2. 6-11; Mt 26, 14-27, 66 – redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes - São Paulo). Doutor em liturgia pelo ‘Pontificio Ateneo Santo Anselmo’ (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, às quintas-feiras.
Leituras: Mt 21, 1-11; Is 50, 4-7; Fl 2. 6-11; Mt 26, 14-27, 66 
“Na hora conveniente, reúne-se a assembleia num lugar apropriado fora da igreja, trazendo os fieis ramos nas mãos. O celebrante abençoa os ramos. É proclamado o evangelho da entrada de Jesus em Jerusalém. Precedida pela cruz, a assembleia se dirige em procissão, cantando salmos e hinos de louvor a Cristo-Rei, para a igreja na qual se celebra a eucaristia” (Missal Romano-Domingo de Ramos).        
Gesto simples. Aparentemente óbvio e previsto nas normas do missal para organizar a celebração do Domingo de Ramos. Na realidade, com a linguagem simbólica própria da liturgia, ele nos introduz em maneira espontânea no Mistério Pascal de Cristo e nos faz vislumbrar nossa participação vital no mesmo. Este evento abre a celebração do Domingo de Ramos e de toda a Semana Santa da Páscoa, marcando o seu movimento interior.
Ao se reunir, como primeiro ato, a assembleia proclama e escuta o evangelho de Jesus. Em resposta, se põe a caminho, seguindo a cruz do Senhor. Continuará seguindo Jesus no seu caminho pascal, através de quatro significativos movimentos ao longo dos ritos da Semana Santa, tendo seu olhar fixo “naquele que iniciou e realizou a fé, em Jesus, o qual, pela alegria que lhe foi proposta, sofreu a cruz, desprezou a humilhação e sentou-se à direita do trono de Deus” (Hb 12,2). Os movimentos marcam quase que todas as etapas de todo  caminho de fé, caminho este que no itinerário pascal encontra seu modelo.
O primeiro movimento é a procissão dos Ramos atrás da cruz do Senhor: em Jesus crucificado a assembleia reconhece e proclama o vencedor da morte e o guia do seu caminho. O segundo acontece na Sexta-feira santa, quando, ao celebrar a Paixão do Senhor, a assembleia desfila em procissão para honrar e beijar com devoção e amor a cruz que está elevada diante de si: a cruz é transformada de patíbulo em árvore da vida e trono da glória de Cristo. O terceiro movimento anima o início da solene Vigília pascal. A assembleia se põe a caminho atrás do Círio Pascal, única luz nas trevas da noite e, ao acender as próprias velas do mesmo Círio, se deixa iluminar pela luz de Cristo Ressuscitado. É na luz de Cristo que os fiéis aprendem a enfrentar os desafios da vida e dela se deixam guiar.
No cume da vigília pascal, a assembleia acabará seu caminho ao aproximar-se, cheia de alegria e agradecimento, à mesa do Senhor, juntamente com os neo-batizados, que pela primeira vez vão receber o corpo e o sangue do Senhor. Inseridos como membros vivos do seu mesmo corpo que é a Igreja, visível na assembleia celebrante, todos recebem o convite solene e cheio de alegria do diácono, para sair da celebração, retornando como portadores da luz e da paz de Cristo em direção àquela mesma realidade ambígua do mundo, da qual saíram no início, para mergulhar-se na páscoa transformadora de Jesus. O movimento interior de adesão a Cristo, iniciado no domingo dos Ramos e alimentado pelas várias passagens rituais, dá lugar ao movimento da vida animada pelo Espírito.
Assim, o primeiro gesto ritual com o qual, no domingo de Ramos, o povo de Deus se reúne para iniciar a celebração da páscoa do Senhor, exprime em síntese a totalidade do Mistério Pascal de Cristo e o profundo envolvimento nele, na fé e no amor, de cada pessoa e da Igreja inteira. Desde sempre a Igreja é o povo de Deus a caminho, impelida pelo Espírito, em movimento através das vicissitudes da história, rumo à plenitude do reino de Deus. Ela é caracterizada pela pluralidade dos dons, das experiências culturais e espirituais, das sensibilidades sociais, das elaborações teológicas e dos diferentes ritos litúrgicos, porém, sempre orientada no seu olhar para Cristo Jesus, morto e ressuscitado, origem e centro da sua comunhão. 
Ela caminha procurando estar em relação profunda com Deus, empenhada a promover a comunhão e a solidariedade entre seus membros e com toda a família humana, para avançar na história como “povo santo e pecador, para construirmos juntos o vosso reino que também é nosso” (Oração eucarística V). Toda comunidade que celebra com fé a páscoa do Senhor, embora com simplicidade de meios e na pobreza das estruturas, vive seu momento forte e profético de povo de Deus a caminho, gerado em maneira sempre nova pela páscoa de Jesus.
As primeiras comunidades cristãs de Jerusalém, movidas pela devoção e pelo desejo de partilhar de perto com amor os passos de Jesus no seu caminho de paixão e de glorificação, organizaram, sobretudo a partir do séc. IV [1], celebrações especiais em cada lugar onde Jesus tinha vivido seus últimos dias de presença física no meio dos seus discípulos, dias tão decisivos no plano de Deus e para a nossa salvação: da última ceia no cenáculo à Paixão no horto das oliveiras, da Morte no Calvário à Sepultura e Ressurreição no jardim, até à Ascensão na colina perto de Jerusalém. A celebração semanal da páscoa no dia do domingo e aquela anual, acabaram enriquecendo-se de celebrações especiais ao longo do Tríduo sagrado e da semana que precedia o Domingo da Páscoa.
A estrutura atual da nossa Semana Santa é herdeira feliz desta tensão de amor das primeiras comunidades, finalizada a guardar a memória sagrada dos acontecimentos históricos fundamentais no plano da nossa salvação. Ao longo dos séculos, por variadas vicissitudes históricas, ela tinha perdido sua linearidade celebrativa e simbólica. Felizmente conseguiu recuperá-la, graças à iluminada ação da reforma litúrgica realizada pelo papa Pio XII nos anos 1951 e 1955, e aperfeiçoada pelo Concílio Vaticano II.
A força narrativa dos acontecimentos da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus proclamados nas leituras bíblicas, e o intenso envolvimento emocional que as celebrações destes dias conseguem realizar, mesmo em pessoas que raramente participam nas liturgias, não devem nos fazer esquecer seu profundo sentido espiritual, e a exigência de participar às celebrações com intensidade de fé e de amor ao Senhor.
Na celebração litúrgica da Igreja se torna presente e atuante, pela ação permanente de Cristo e do seu Espírito, o amor infinito do Pai, manifestado no amor sacrifical de Jesus até a morte, e se renova o dom da vida divina que nos faz viver como filhos e filhas do Pai e irmãos uns dos outros.
Os emocionantes ritos destes dias vão muito além de uma devota reconstrução cênica da Morte e Ressurreição de Jesus como acontecimentos do passado. Eles nos proporcionam o encontro vivo com o Cristo vivente. Doam-nos a energia transformadora do seu amor, fazendo-nos viver desde agora, de antemão, as primícias da sua plenitude na relação filial com o Pai e na relação fraternal entre nós.
Tendo presente esta perspectiva sacramental das celebrações, é possível e muito oportuno valorizar em maneira fecunda a grande riqueza das expressões da religiosidade popular, que foi muito criativa na sua capacidade de fazer reviver os acontecimentos pascais, na dimensão trágica e na de alegria jubilosa que os caracterizam. 
Deixamo-nos guiar neste apaixonado caminho rumo às entranhas do Senhor, por alguém que viveu profundamente esta experiência. “Onde podemos encontrar repouso tranquilo e firme segurança para a nossa fraqueza, a não ser nas chagas do Salvador?... Na verdade vou buscar confiantemente o que me falta nas entranhas do Senhor, tão cheias de misericórdia que não lhe faltam fendas por onde se derrame. Perfuraram suas mãos e seus pés e transpassaram seu lado com a lança; por essas fendas é-me permitido... provar e ver quão suave é o Senhor... Mas o cravo penetrante tornou-se para mim a chave que abre para que eu veja a vontade do Senhor. Clama o cravo, clama a chaga que verdadeiramente Deus está em Cristo, nele reconciliando o mundo” (São Bernardo, Sermão 61, 3-5 sobre o Cântico dos Cânticos, LH Monástica, 2 Semana de Quaresma, quarta-feira). 
Durante os dias da Páscoa, o estilo, poderíamos dizer a arte, com que a liturgia costuma celebrar o Mistério de Cristo, se exprime em toda a riqueza da sua linguagem, e nos envolve em maneira fascinante no mistério que estamos celebrando.
O Papa Bento XVI, com sua especial sensibilidade litúrgica e pastoral, nos ofereceu novamente em maneira eficaz o ensinamento dos Padres da Igreja e do Concílio Vaticano II, sobre esta estrutura simbólica e sacramental da liturgia e sua capacidade de promover nossa participação profunda: “Igualmente importante para uma correta  arte da celebração é a atenção a todas as formas de linguagem previstas pela liturgia: palavras e canto, gestos e silêncios, movimento do corpo, cores  litúrgicas dos paramentos. Com efeito a liturgia, por sua natureza, possui uma tal variedade e níveis de comunicação que lhe permite cativar o ser humano na sua totalidade” (Exortação apostólica Sacramentum Caritatis, n. 40 [2007]).
A Igreja nos solicita, para uma participação ativa, consciente, plena e frutuosa, “que a própria natureza da liturgia exige e à qual, por força do batismo, o povo cristão, ‘geração escolhida, sacerdócio régio, gente santa, povo de sua conquista’ [1 Pd 2, 9] tem direito e obrigação” (Constituição Sacrosanctum Concilium n. 14). Trata-se de acolher a ação de Deus em nós, respondendo com amor ao seu amor, unindo-nos ao amor de Cristo pelo Pai e pelos irmãos.
Cristo continua sendo o protagonista central de toda ação litúrgica da Igreja com seu Espírito. Isto aparece em maneira ainda mais marcada nas celebrações desta semana central do ano litúrgico, que chamamos de “Santa”, enquanto nela se concentram os eventos decisivos da sua vida, da sua morte e da sua ressurreição com o envio do seu Espírito, eventos que nos tornam partícipes da vida e santidade de Deus. Convidam-nos a nos deixar envolver plenamente no dinamismo pascal de morte ao homem velho para a vida nova no Espírito.
Bendito o que vem em nome do Senhor!”. Com esse refrão acompanhamos a procissão até a porta da igreja. A entrada messiânica de Jesus em Jerusalém, no júbilo e na alegria (evangelho de Mt 21, 1-11, e procissão) é inseparável da proclamação da sua Paixão, centro da liturgia eucarística deste domingo (Mt 26, 14 – 27,66). A leitura do profeta Isaías, que delineia a figura e a missão do Servo do Senhor sofredor, salvado por Deus e por ele escolhido a tornar-se Salvador dos povos (Is 50, 4-7), destaca a mesma intrínseca conexão entre sofrimento e salvação. A mesma mensagem nos entrega Paulo ao apresentar Cristo, modelo inspirador da nova maneira de viver na comunidade dos discípulos. Ele despiu-se voluntariamente da sua dignidade divina para assumir a condição humana de extrema humilhação até a morte de cruz, porém, por isso foi glorificado pelo Pai e constituído Senhor e Salvador de todos (Fl 2, 6-11). A lógica da Páscoa se torna o sangue que corre nas veias do corpo do discípulo irrigando a comunidade de vida.
Ela realiza a passagem de um mundo para outro. Como canta o Prefácio, “Pelo poder radiante da cruz, vemos com clareza o julgamento do mundo e a vitória de Jesus crucificado”. Ao canto jubiloso do salmo real cantado pela assembleia em procissão, “Ó portas, levantai vossos frontões! Elevai-vos bem mais alto, antigas portas, a fim de que o rei da glória possa entrar” (Sl 23,9 – Processional), faz eco o grito sofrido e confiante de Jesus na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?.... Vós, porém, ó meu Senhor, não fiqueis longe, ó minha força, vinde logo em meu socorro!” (Sl 21, 1. 20 - Responsorial ).
O canto alegre do Hosana e de glória e louvor a Cristo rei e redentor durante a jubilosa procissão, se entrelaça com a sóbria meditação sobre o extremo exemplo de humildade dado por Cristo ao se tornar homem e morrer na cruz. A partilha com a cruz de Cristo nos permite participar da sua glória (Oração do dia). Foi o caminho pascal de Cristo. É o caminho da Igreja, seu corpo e sua esposa amada. É o caminho de fé e de amor de todo discípulo e discípula.


SÃO PAULO, quinta-feira, 14 de abril de 2011 
Fonte: - ZENIT.org 
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